sorriso besta . cabelo ao vento . pés descalços . abraço apertado

terça-feira, outubro 23, 2012

*INCÔMODO*

'flor amarelinha colorida de hidrocor
esse jardim é todo feito de isopor ...'


Que se perca o comodismo por algum instante – 
‘[...] por aquela ânsia e soência, de avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo.’ [Guimarães Rosa em Grande Sertão: veredas]

·         SOÊNCIA – derivado do verbo soer. Costumar, ter por hábito.

O que me incomoda é a comodidade de ser/ter/estar que se instala em nós. 
Nos acostumamos, logo nos acomodamos com o que temos, com o que somos e onde estamos, porque é simplesmente confortável permanecer assim, sem nada mudar. Aceitamos a ‘boa regra’ de que tudo precisa ser de uma maneira só. Não que eu ache ruim, mas, e se eu quisesse e preferisse me arriscar e inverter a ordem, fazer diferente do esperado, frustrar as expectativas, começar tudo de novo, mudar de lugar, andar de bicicleta, cuidar somente dos filhos, fazer outra faculdade, etc? Infelizmente nem tudo o que é confortável é o melhor.
Acho que vez ou outra, por algum instante, temos que nos permitir experimentar coisas novas e diferentes, ter desejos maiores, avançar, sair do conforto, se incomodar.
Busque a felicidade e não a boa regra de tudo!


Eu sei mas não devia
[Marina Colasanti]

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. 
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. 
E porque não olha pra fora, logo se acostuma a aceder cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. 
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. 
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar. 
A sair do trabalho porque já é noite. 
A cochilar no ônibus porque está cansado. 
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. 
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. 
E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar. 
E a pagar mais do que as coisas valem. 
E a saber que cada vez pagará mais. 
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição. 
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor. 
Ao choque que os olhos levam na luz natural. 
Às bactérias da água potável. 
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. 
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. 
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. 
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. 
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. 
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, que se perde de si mesmo.


quem me inspira hoje: Sueli Emerich, Maressa Moura, Gustavo Dias